Setembro Amarelo?
A você que aqui chegou: se passa por um momento difícil e complicado, independente da época do ano, do mês ou da cor a ele atribuída, leia até o final. Eu não posso te salvar – ninguém pode, só você -, mas espero poder te influenciar a tomar uma atitude que seja nascida do Amor ao invés da dor.
Se este for um momento de emergência, disque 188 ou acesse https://www.cvv.org.br/, depois sugiro que retorne para ler o texto completo.
Sinta-se, seja você quem for, bem-vindo a este espaço.
Finalizamos o mês de setembro desse ano e dentro de algumas horas será outubro. Se setembro é amarelo, outubro é rosa. E novembro é azul. Dezembro tem cor? Honestamente não sei.
O que me intriga é que assim que iniciarmos um novo mês todas as atenções se voltam para outra coisa e cessam as ações e conversas públicas sobre o tema passado, como se houvéssemos fechado um ciclo e sanado o problema. Mas isso não é verdade, sabemos.
Desde o ano de 2015, por iniciativa do Centro de Valorização da Vida (CVV), Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e Conselho Federal de Medicina (CFM) - onde estava o Conselho Federal de Psicologia (CFP) nesse movimento? Também não sei, não encontrei nada a respeito - foi lançada no Brasil a campanha do Setembro Amarelo, movimento que surgiu nos EUA no ano de 1994 a fim de trazer os holofotes da sociedade para o tema do suicídio e questões relacionadas, como o cuidado com a saúde mental.
De lá pra cá é notório como a campanha cresceu para além das instituições de saúde – pra você ver, até o CFP descobriu que ela existe! -, ganhando espaço nos noticiários e programas matinais de televisão, nas redes sociais e também entre os círculos mais jovens da sociedade, público cujo suicídio representa a segunda maior causa de morte, segundo a OMS. Essa notoriedade é muito importante, sim.
É sempre incerto falar de generalidades em termos da psique humana. Enquanto aspectos basilares de cognição e funções psíquicas centrais podem ser discutidos e medidos com maior ou menor precisão (e ainda assim há muito debate sobre esses temas), o terreno é por demais pantanoso e enevoado para que se possa falar com propriedade sobre onde ainda não se pisou. Ainda assim, como as criaturas nascidas e criadas neste planeta que somos, obedecemos a certas regras e leis universais, por assim dizer.
Todos os seres que aqui estão nasceram para aqui estar como estão, assim se assegurou a evolução. O leão será leão, a raposa será raposa, o macaco será macaco, o vírus será o vírus, e o Humano, que será?
Dentre todos os animais do planeta somos os únicos em que conseguimos distinguir o conjunto articulado de racionalidade, lógica, autoconsciência, linguagem e cultura. Esse conjunto de competências - o qual chamarei de Razão para simplificar – nos habilita a construir, destruir e reconstruir o mundo qual nossa imagem e semelhança, modificar os ambientes de forma planejada, reconhecer a consequência de nossos atos e prever formas de agir para manter ou mudar esses resultados.
Ao contrario das demais espécies de animais, seres humanos podem escolher como se comportar em determinadas situações, respeitando ou não o bicho que existe dentro de cada um na forma dos sentimentos, emoções e instintos. Essa habilidade trazida pela Razão nos empodera o suficiente para criarmos regras e normas gerais de convivência e conveniência social e assim organizarmos a população humana de nosso planeta.
Acontece que, ao longo do nosso desenvolvimento como espécie, nem todas as regras desenvolvidas levaram à saúde e bem-estar de todos. Mesmo hoje nem todos concordamos com as leis ou com a forma como outros humanos as aplicam ou seguem. Acredito que, em maior ou menor medida, todos nos submetemos a normas que não concordamos para manter o aspecto de coesão de nossas vidas, e isso pode nos levar a dissonâncias fortes o suficiente para que tentemos ser aquilo que, em verdade, rejeitamos.
O leão, a raposa, o macaco, in natura, desconhecem esse sentimento.
Na busca de sustentar o que não somos, podemos ocultar um lado de nossas personalidades em favor de outra, mais bem-vista, mais aceita, mais de acordo com o papel que estejamos tentando desempenhar. No entanto, como uma panela de pressão no fogo por tempo demais, se alimentamos apenas nosso “lado” ao qual valorizamos, aquilo que renegamos apenas tende a explodir em nossas caras mais cedo ou mais tarde.
E aí, meus amigos, é merda pra todo lado.
Por isso digo: sim, por favor, vamos falar de saúde mental e suicídio!
Vamos problematizar, levar o tema para as escolas, faculdades, consultórios, praças, chás das tias, rodas de samba, escolas de forró, vamos buscar as botas de Judas só para, na volta, podermos lhe falar do tema - certamente ele também teria uma ou duas palavrinhas a nos dizer a respeito do assunto; vamos promover encontros a respeito do tema e suas implicações, vamos fazer seminários e eventos em empresas, capacitações, oficinas e workshops acerca da importância do cuidado com a saúde mental, vamos trazer histórias reais de pessoas que sobreviveram a tentativas de suicídio, vamos ouvir parentes e amigos de quem cometeu o ato, vamos resgatar os tabus familiares e coloca-los em cima da mesa de jantar da casa da avó, vamos falar da importância da psicoterapia, vamos falar no instagram sobre cuidados com a saúde mental, vamos nos dispor a ouvir e acolher, vamos, vamos, vamos... vamos?
E quando chega outubro, quem mantem essa postura, essas iniciativas?

Ouroboros: símbolo do eterno retorno
O Círculo e a Espiral
No meu trabalho como psicólogo clínico tenho me deparado com situações de ideação e tentativa de suicídio desde o tempo do estágio, ainda na faculdade. São circunstâncias muito delicadas e doloridas, frequentemente difíceis, que exigem atenção e total doação ao momento presente, sem ressalvas. Não posso falar por meus colegas, mas me sinto particularmente vivo nesses momentos.
A oportunidade de encarar a mortalidade de nossa condição humana de forma tão crua, lidar com a morte de forma tão iminente, muitas vezes quase palpável, me despe de quaisquer barreiras que possam existir. Nesses momentos minha intenção é compreender o que se passa, estar com aquela pessoa na borda e escutar seu suplício. Sempre deixo claro que não me é dada a capacidade de salvar a ninguém que não seja eu mesmo, mas que, caso a pessoa queira, estou disposto e desejoso de continuar a escutá-la e trabalhar com ela quaisquer questões que a estejam impelindo a saltar abismo adentro.
Para o ponto final, um verbo no infinitivo.
Continuação.
Te pergunto: se num jogo de futebol o pontapé inicial é o único dado, qual será o resultado da partida?
Exatamente, o placar não muda, a tabela não muda.
Como uma serpente que morde o próprio rabo, todo movimento nos leva apenas a seguir no mesmo lugar.
Do mesmo modo, se tudo o que fazemos durante o Setembro Amarelo é desenvolver atividades pontuais, o impacto fica retido num pequeno círculo dourado, ignorante da escuridão ao seu redor.
A figura do Ouroboros é um símbolo presente desde tempos imemoriais na humanidade, suas representações variam tanto quanto as civilizações que o utilizaram: pode ser apenas uma serpente mordendo o próprio rabo, podem ser duas cobras se abocanhando e formando o símbolo do infinito, pode ser representado com dragões, raposas, seres alados, vai do gosto do freguês; o que não muda é o seu significado básico: a natureza cíclica e repetitiva das coisas.
Curiosamente existem outras representações da serpente que rompem com esse significado que datam de tempos tão remotos quanto. Podemos ver, por exemplo, a serpente espiralada com a cabeça trespassada por uma flecha, simbolizando o Tempo, onde mesmo o que aparentemente se repete é apenas uma “rima” com um evento anterior, não sua exata cópia; temos também o caduceu de Hermes, representando a sabedoria e os estágios da consciência humana ou ainda a serpente bíblica que traz o fruto proibido.
Mas quero aqui destacar uma outra figura viperina:

Sem armas e sem agouros, Asclépio (ou Esculápio) é o deus greco-romano da cura e da saúde. Em seu bastão há uma serpente viva, enroscando-se em direção a sua mão. Ele não se retrai ou se amedronta, segue como se o animal fizesse parte de seu instrumento. E faz.
Com seu cajado maneja algo que poderia trazer a morte e, sem medo, conduz a cura. Não é à toa que seu bastão é utilizado como o símbolo das áreas médicas. Ao retirar a serpente de seu ciclo auto-devorador dá a ela um destino, alonga-a, deixa que se enrosque por vontade e necessidade próprias e a utiliza conforme a situação exija.
Vou um tanto além: em sua sabedoria, me parece que essa divindade antiga aprendeu a natureza do processo, com seus percalços e perigos, e nos inspira a seguir seus passos, com paciência, sem temor, manejando o bicho junto com o instrumento, posto que juntos fundem-se em uma coisa só. E assim nasce a capacidade de curar.
Setembro termina, mas que tal não deixar que os cuidados com a saúde mental terminem com ele?
Que tal, se você sente necessidade, se vê que sua vida pede o fim, buscar ajuda?
Que tal dar uma chance de a serpente parar de se devorar, permitir-se sarar e poder passar a curar o outro?
E você, que mobiliza grupos, empresas ou redes sociais, que tal continuar trazendo propostas, incentivando as pessoas a buscarem processos que possam lhes ser curativos durante todo o ano?
Não sei vocês, mas sinto que o nosso mundo de pontos poderia usar mais infinitivos.
Continuemos?