Humanos, demasiadamente humanos
Suponha que estamos diante de um rio.
Seu curso se estende para além da curva que os olhos conseguem ver e ele vem de uma fonte além de onde o pensamento alcança. Suas águas são escuras, não sabemos ao certo sua profundidade; desconhecemos também a real força de sua correnteza: pode ser que a calmaria de sua superfície mascare conflitos, turbilhões e revoluções; pode ser que sua intempestividade seja apenas aparente e banhar-se por entre suas ondulações que inspiram ansiedade seja na realidade um bálsamo revigorante.
Não sabemos. Não podemos ter certeza até entrarmos naquelas águas. O que pode ser uma experiência recompensadora pode também ser uma das nossas últimas memórias neste planeta. É muito arriscado. Precisamos aprender a lê-lo antes de tomar qualquer atitude. Quanto mais soubermos, maiores serão nossos questionamentos, jamais seremos capazes de vê-lo por inteiro ou saber tudo sobre ele.
É assim que vejo a Consciência Humana, meu objeto de trabalho.
Cada ser humano é único, possui uma história única, uma perspectiva única. Por mais que eu e você estejamos no mesmo lugar, olhando o mesmo rio, na mesma hora do mesmo dia, ainda assim o que veremos será completamente diferente um do outro, seja porque olhamos para pontos diferentes da paisagem, seja porque o que olhamos nos traz memórias e sensações diferentes. O fascínio por essa noção me trouxe cada vez mais para perto das vertentes da psicologia chamadas de Humanistas – apesar de sempre me perguntar se existe alguma abordagem psicológica que não seja humanista em essência – e isso me faz ser o profissional que hoje eu sou, com minhas particularidades, habilidades e também desconhecimentos.
Posso não saber de muita coisa nesse mundo (alô alô matemática, aquele abraço!), mas uma coisa eu posso dizer com firmeza: pau que dá em Chico não dá em Francisco. Um é um, outro é outro, cada um tem sua vida e seus conceitos; onde Chico pode ser mais maleável, Francisco pode ser mais duro, onde Chico pode ser mais forte, Francisco pode ser mais fraco.
O que quero dizer com isso? Que o remédio de um pode ser o veneno de outro.
Por isso muito tem me angustiado ver pelo mundo afora alguns terapeutas com promessas de cura garantida, diversos gurus e seus exclusivos métodos infalíveis para despertar a Consciência Superior e atingir o Nirvana, mil coaches lançando programas de doze passos para a felicidade absoluta, blogueirinhos místicos de lantejoulas na testa com rituais ancestrais da antiga Suméria de desbloqueio de prosperidade e abundância por apenas R$499,99 e o escambau. Meu olhar crítico-reflexivo me diz que cada uma dessas coisas não pode ser única, perfeita e absoluta em detrimento das outras e, ao mesmo tempo, ser verdadeira.
Será que haveria algo como uma resposta definitiva para os problemas da humanidade (os seus e os meus inclusos)?
Seria bom, né?
Mas aqui quero apresentar um paradoxo que é meu xodó pessoal: para crer é preciso duvidar.
Como assim? Respira fundo e segue comigo.
A Humanidade Soberana em cada um de nós
Quem já experimentou suas doses de desespero existencial (e quem de nós sinceramente nunca bebeu dessa taça?) sabe como ficamos vulneráveis nesses momentos. É fácil nos sentirmos perdidos, em busca de um farol na noite escura pra retornar aos nossos tempos de luz, ou ainda para voar na direção de épocas vindouras de maior força, capacidade e potência. É muito natural desejarmos uma resposta que sane nossa angústia, que nos torne pessoas melhores, que nos dê perspectiva. O problema não está aí.
Isso me lembra de um caso que aconteceu comigo:
Uma vez estive, atendendo ao convite de uma amiga, no evento de uma determinada empresa que só depois vim descobrir como sendo de marketing multinível. Apesar do meu desagrado, fiquei até o fim e pude com isso observar determinados comportamentos e sentir em minha carne o que vejo como armadilhas desse tipo de negócio.
Em dado momento, o palestrante nos mostrou a imagem de um homem ao qual tinha como mentor, apresentou-o como uma pessoa que, em suas palavras, “atingiu a máxima plenitude possível para um ser humano”, emendando entusiasmado “ele conquistou e se tornou mestre de todos os seus aspectos biológicos, emocionais, psíquicos, espirituais e financeiros!”. Disso seguiu-se um longo silêncio, o qual aproveitei para observar os rostos ao meu redor. Alguns, como eu, não acreditaram em uma afirmação tão pretensiosa, mas outros pareciam ter ficado bastante entusiasmados, e a esses foram sendo oferecidas cada vez mais vantagens, benesses e possibilidades de evolução rápida.
Ao final do evento, vi algumas dessas mesmas pessoas encantadas assinando seus nomes em papéis que lhes eram oferecidos, se dispondo a pagar uma quantia significativa para tornar-se um “colaborador” da empresa e, nas palavras do palestrante, “se dar a chance de crescer e transformar a sua vida” assim como o tal mentor havia feito.
Saí de lá pensativo.
Constatei com meus próprios olhos o fato de que quando estamos em um momento de vulnerabilidade nada parece nos chamar mais do que uma figura na qual podemos enxergar perfeição e que, por sua vez, sentimos que nos enxerga de volta.
De onde vejo, o problema parece estar aqui: quando nos sentimos vulneráveis e depositamos em outro ser humano a responsabilidade de nos guiar até o que sentimos ser o “nosso lugar”.

Sri Prem Baba: homem ou Santo?
Quando explodiu o escândalo envolvendo o “guru dos famosos” Sri Prem Baba em 2018, vi uma grande comoção tomar conta das redes sociais. Muitas das pessoas que depositaram suas vidas e sua fé nos ensinamentos daquele homem se sentiram traídas. Como assim um Homem Santo pôde abusar de duas seguidoras, trair seus votos de celibato e mentir abertamente sobre sua natureza para todos: fiéis, curiosos, artistas, grande mídia?
Seus seguidores confiaram em sua Santidade, mas assim fizeram sem a questionar de antemão.
Posso falar a vocês de todas as virtudes da humanidade, dar a resposta para as mazelas que assolam nossa civilização, dizer que sei a cura para o ódio e a ganância que nos mata dia a dia. Isso me faria santo?
Ou precisaria usar uma túnica branca, brandir um cajado, deixar meu cabelo e barba crescerem, sorrir a esmo e juntar as mãos em reverência? Assumir a possibilidade de errar, mas nunca o fazer, falar sempre em tom ameno, não comer animais, parar com pequenas mentiras e sutis exageros, meditar todos os dias... isso me faria santo? Se sim, por quê?
Ao explodir a verdade todos foram atingidos pela Humanidade pulsando na carne viva que habita sob a capa do Perfeito. De repente a figura que sabia de tudo, guiava a todos, revelou-se apenas um mero mortal como nós, que também tem dúvidas, fraquezas, instabilidades, inseguranças, alegrias, tristezas, imaturidades, sabedorias, ignorâncias; que também bebe, também come, também transa, também goza, também sangra, também fere, também ama, também fala palavrão, também bate o dedinho na quina da cama, também mija, também caga.
A Humanidade é Soberana em cada um de nós, ela é tudo o que podemos ser, “bom” e “mau”. Humanidade é integridade, ela organiza tudo em seus espaços. Quanto mais tentamos adestra-la para ser uma só coisa, maior a sua potência contrária contida. Com o passar do tempo, se assim continuamos, nos tornamos qual uma panela de pressão cheia de “dejetos” que ficou tempo demais no fogo. O resultado?

“Uma luz na escuridão ou apenas medo do escuro?”
Ainda estou aprendendo a ser gente.
Digo isso sem modéstia – a considero a pior das hipocrisias -, é um fato.
É um desejo profundo meu ser admirado por tudo o que crio, faço e falo (e haja coisa a criar, fazer e falar), receber olhares atentos e interessados, comentários desafiadores, convites fortuitos, tudo isso e muito mais. De preferência agora.
E sabem o que é isso? Isca de peixe.
É por isso que me fisgam, se eu não estiver atento.
É por isso que me visto da fantasia que a mim empurram e calo minha boca pro que penso e sinto em detrimento do que querem assistir.
É por isso que eu não crio, não faço, não digo o que realmente quero, penso, sinto. Tudo para receber elogios que, logo que adoçam a língua, amargam a garganta e ferem as entranhas.
É por isso que eu morro.
Se pecados capitais existem podem ter certeza que o meu é Vaidade.
Mas quem seria eu sem ela?
A fruta proibida é a mais tentadora, afinal.

No mito judaico-cristão da criação, Adão e Eva foram tentados pela Serpente na árvore do Éden e o nosso mundo, com tudo o que há nele, existe como consequência disso.
Ao comer do fruto tão voluptuosamente oferecido, com a promessa dos seus sabores desconhecidos ao alcance de suas bocas, caíram no desfavor de Iaweh e foram expulsos do paraíso para o mundo que conhecemos e habitamos - com suas dores e louvores. Com isso, passaram a conhecer uma existência completamente diferente daquela à qual estavam habituados: não havia mais um Grande Pai orientando e lhes entregando tudo nas mãos, os ouvindo e respondendo aos seus pedidos, não. O mundo que descobriam a cada nascer do sol lhes era hostil; o seu contato com o Divino fora maculado pela ousadia de desejar saber mais, sentir mais, viver mais.
Nascidos na ignorância e crescidos na inocência eram crianças adultas vivendo sob a redoma de seu Criador, absortos em seu mundo de totalidades sem nunca terem conhecido a falta e, por consequência, o desejo.
Tentados com perspicácia e marcados pela desobediência foram apresentados pela primeira vez àquilo que não podiam possuir, à ousadia e à responsabilidade pelos próprios atos.
Quem seriam eles se não houvessem desobedecido? Quem seríamos nós?
Se não houvesse tentação – resultado da consciência da falta, que por sua vez leva ao desejo - jamais teríamos nascido, nunca poderíamos viver, aprender, criar, sentir, procriar, ter prazer.
Há quem diga que assim seria melhor.
Insisto em discordar.
A função dos mitos é educar e como forma de arte muitas são suas possíveis interpretações. Podemos falar do Pecado Original, podemos falar do débito da Humanidade para com o Criador, podemos falar do retorno à fonte primordial como objeto de busca... você entendeu: podemos falar.
E como falamos ao longo desses longos milênios!
Falar é a lei de nossa raça e como humano que sou, falo. Me apoiando no mito e nas considerações desse texto, proponho aqui uma nova educação:
O “pecado” não é aquilo que nos destrói, mas justamente o oposto.
Quem seríamos nós sem a possibilidade de errar, de nos arrepender, de chorar lágrimas de remorso? Quem seríamos sem o prazer de ceder ao “errado”, de cometer uma vingança, de ver um desafeto sofrendo dolorosamente? Quem seríamos sem o gosto pelo proibido, sem a cobiça ao que nos falta, sem o desejo que tira nosso sono?
Quem seria eu? Quem serias tu?
A carne fala, a carne pede, a carne demanda. Por que a apartamos do que consideramos espírito?
Em outras palavras:
Por que separamos aquilo que gostamos, mas não podemos/devemos deixar que saibam daquilo que não necessariamente gostamos, mas é bom/desejoso que vejam?
Talvez consideremos o que está oculto sujo demais para trazer à luz, talvez nem mesmo saibamos do que se trata - e justamente por isso tenhamos medo.
Nem Santo, nem Besta

Aleister Crowley: homem ou Besta?
Tudo isso me leva a pensar na mais famosa – idolatrada por uns, execrada por outros –figura do ocultismo do século XX: Aleister Crowley. Considerado por muitos como a encarnação do próprio Anticristo na Terra a partir das propostas e práticas controversas, especialmente frente à conservadora sociedade inglesa da época, não era também mais que um outro ser humano a propor visões de mundos e métodos para se alcançar estados de consciência livres das amarras sociais.
Em uma de suas obras mais famosas, escreveu:
“Faze o que tu queres há de ser o todo da Lei” – Aleister Crowley, O Livro da Lei (pg. 33).
Essa frase, tão famosa e recitada – e mesmo que você nunca a tenha escutado dessa forma acredite em mim: você a conhece -, não é o que parece à primeira vista. Desacompanhada de seu complemento escrito e aliada à biografia de seu autor, se assemelha a um grito pela desobediência geral, egoísmo e hedonismo. Não culpo quem assim pensar, pois como disse, há respaldo suficiente para essa leitura, porém é necessário esclarecer o que significa a palavra “vontade” (will, no original) nesse contexto.
Na filosofia de Crowley, a vontade representa o princípio norteador do ser encarnado, como explicado no seguinte trecho:
“Isso significa que cada um de nós, astros, deve se mover em sua verdadeira órbita, conforme marcada pela natureza de nossa posição, a lei do nosso crescimento, o impulso de nossas experiências passadas. Todos os acontecimentos são igualmente lícitos – e cada um deles é necessário, a longo prazo -, para todos nós, em teoria; mas, na prática, apenas um ato é lícito para cada um de nós em um dado momento. Por esta razão, o Dever consiste em determinar a experiência do acontecimento certo de um momento de consciência para o outro.
Cada ato ou movimento é um ato de amor, a união com uma ou outra parte de ‘Nuit’*; cada um deles deve ocorrer ‘sob a vontade’, escolhido de modo a atingir, e não frustrar, a verdadeira natureza do ser em questão”.
Aleister Crowley, O Livro da Lei (idem).
Desse modo, nada que é feito seguindo nosso instinto interno, nosso impulso autêntico de vida – seguindo o nosso coração, em outras palavras -, poderia ser considerado errado, posto que agindo dessa forma estamos ocupando o espaço a nós destinado, obedecendo a nossa natureza própria e insubstituível.
Se não agirmos como nós e por nós, quem agirá?
Certamente não o meu vizinho. Nem o seu.
Por que, então, calar a humanidade tão sutil e gritante que mora em cada um de nossos peitos? Para que apartar uma faceta que, como Adão e Eva, está tão ávida por conhecer, por experimentar?
Nossos erros não nos diminuem, nos engrandecem.
Nossos tropeços nos permitem olhar pro chão, relembrar o caminho.
A perfeição não está “hosana nas alturas”, mas diante do espelho, nos rostos ao redor. Já parou para considerar isso?
Se o perfeito está além de nosso alcance, é apenas uma ideia, então talvez a questão não seja a nossa imperfeição, mas nosso desejo de pensar algo distinto de nós e chamar a isso de “perfeito”.
Todos neste mundo comemos do fruto proibido todos os dias, conscientes ou não. É essa parte importante da nossa dieta psíquica que nos impele pra cima, pra frente, pro sentido que preferirmos dar. Que tal se, ao invés de pegarmos o diabo pelos chifres, o pegássemos pela mão e ouvíssemos quais palavras ele veio para nos dizer? Se o ar fede a enxofre talvez estejam em nós as portas do inferno e seus habitantes. Aceitar isso é difícil, mas quem disse que sair do paraíso, pisar no chão e aprender a ser gente é tarefa fácil?
E aos nefelibatas de plantão deixo o aviso: seu ídolo, guru ou mentor é tão humano quanto você. Pise o pé na terra antes que a cera de suas asas derreta quando chegar perto demais do seu sol.
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* Refere-se à deusa egípcia da noite, a qual relaciona-se com o que nomeia de propriedade do Espaço, algo muito similar à ideia desenvolvida décadas depois por Carl Jung que conhecemos pelo nome de Inconsciente Coletivo.