A "Cartilha do Homem Saudável" | #1
Já há algum tempo tenho sentido aflorar em mim novamente a vontade de escrever e falar publicamente sobre Masculinidades.
Para aqueles que não me acompanham, esse foi um tópico que sempre me chamou a atenção – desde bem antes do boom do “precisamos falar sobre masculinidade tóxica”, coqueluche dos anos 2019/20. Lembro que desde a faculdade, ao ver as rodas de mulheres, me perguntava onde estavam as rodas de homens e por que ninguém parecia ter interesse em fazer algo semelhante, afinal de contas - homem, mulher, cavalo, cachorro ou papagaio - todo mundo é gente e, como tal, todo mundo tem questões que precisa falar, comunicar, partilhar, saber que não está só, principalmente entre seus pares.
No ano de 2019, motivado pela visibilidade recém adquirida do tema, resolvi tomar ação e, em setembro do mesmo ano encontrei uma parceria que estava no mesmo movimento e desejo; dessa união nasceu o Coletivo Homens em Trabalho, um grupo de encontro semanal, sem custos e aberto a todos os homens que quisessem participar. A finalidade era proporcionar um espaço de acolhimento e livre expressão, onde tudo pudesse ser dito da forma que fosse dita e debatido em grupo. Não criamos uma moral, não aceitávamos regras propostas sem questionar, não nos posicionávamos contra ou a favor de nada sem investigar a fundo e – o que acredito ser a maior qualidade que o Coletivo já teve – não nos propúnhamos a criar uma cartilha do “homem saudável”.
E é disso que quero falar hoje.
Há algum tempo, corroborando para o meu reboliço interno, o cantor Tiago Iorc lançou a música Masculinidade. Longe de ser unanimidade – e às polêmicas chegarei mais à frente -, é inegável o marco: não me recordo de nenhum cantor jovem em diálogo com o mainstream midiático que tenha trazido o tema à tona em sua obra (se houver gostaria de conhecer).
Isso é massa, de verdade.
Muitos homens não conseguem se reconhecer como indivíduos pertencentes a uma cultura padrão de masculinidade e, ao mesmo tempo, também não se identificam com a radicalização do discurso que se opõe veementemente a tal cultura; e aí, o que fazer? Acho muito importante que alguém “modinha” bote a cara pra falar de si, seja lá o “si” que for.
Falar de si: esse é o ponto transformador.

"Torna-te quem tu és"
(arte: Criança geopolítica observando o nascimento do homem novo, Salvador Dalí)
Enquanto psicólogo clínico escuto muitas pessoas todos os dias.
Todos, independente de sexo, gênero, orientação sexual, cor de pele ou time de futebol vêm às sessões em busca de conhecimento sobre si e suas questões. Todos, indistintamente, carregam sofrimentos e culpas, marcas e violências, agressividades, raivas e tantas outras coisas impossíveis de descrever com palavras. Já ouvi confissões de desejos “terríveis”, já tive de atuar em situações de vida ou morte, já ofereci colo (terapêutico, não confundir com o colo de um parceiro ou amigo), já desci a mão (novamente: terapeuticamente), já sorri, gargalhei e chorei de alegria, tristeza e beleza. Gosto sem distinção de todas as pessoas que atualmente atendo.
E sabem por quê?
Porque são pessoas.
Já dizia Belchior...
“Eu sou pessoa
Palavra pessoa
Hoje não soa bem
Pouco me importa!”
Canção: Conheço o meu lugar
Você se sente livre para ser você?
Tome um instante para pensar nessa pergunta. Genuinamente.
Quantas vezes sua mão é freada por um pensamento que te atropela, coage ou congela?
“O que vão dizer de mim?”
“O que será que ela vai pensar?”
“Meu deus, vou desagradar fulano!”
“Eu não posso fazer isso!”

Não pode, mas quer. E você sabe que quer.
E aí?
“Eu sou um merda.”
“Eu não mereço a vida que eu tenho.”
“Ela é boa demais pra mim!”
“Como posso pensar numa coisa dessas?!”
Como não acreditar nesses pensamentos, né? Afinal parece que temos um tesão latente por aquilo que nos paralisa e arrasta pro fundo, como o lodo de um lago. Não somos peixes, precisamos de ar; ao olharmos pra cima e vermos o espelho d’água percebemos que nossos pulmões foram roubados de seu alimento e que, em breve, seremos roubados de nossa consciência, para sempre esquecidos sob o peso imensurável das águas da culpa e da vergonha, seja por um ato, pensamento ou sentimento.
Para as ameaças externas temos os nossos escudos, mas e quando a lâmina que nos fere está em nossas próprias mãos?
Tão importante quanto: como ela foi parar lá e como aprendemos a usá-la contra nós mesmos?
Este não é um sacrifício por honra, glória ou reparação, como os samurais costumavam fazer. Em verdade não me parece nem que se trate de um sacrifício, mas sim de um rito de automutilação cuja finalidade não é se redimir, mas se conformar com uma vida amarga e infrutífera, sem desejo, sem tempero, sem afeto.
Segundo Robert Bly, poeta, terapeuta e autor do brilhante livro João de Ferro: um livro sobre homens:
“Cada criança vive dentro de sua casa psíquica, ou castelo da alma, e a criança merece o direito à soberania neste lugar. Quando um dos pais ignora essa soberania e a invade, a criança sente não apenas raiva, mas também vergonha. Ela conclui que se não possui soberania ela não deve ter valor algum. Vergonha é o nome que damos à sensação de que somos indignos ou inadequados como seres humanos. [...]
Quando nossos pais não respeitam nosso território ao mínimo, seu desrespeito nos soa como a prova cabal de nossa inadequação. Um tapa no rosto fere profundamente, pois a face é a fronteira de nossas almas, e nós fomos invadidos. Se um adulto decide cruzar nossos limites sexuais e nos tocar, não há nada que nós, enquanto crianças, possamos fazer a respeito. Nossos guerreiros morrem. A criança, tão cheia de expectativas e bênçãos quando ele ou ela está entre adultos, se enrijece com o choque e cai na atemporal e fossilizada confusão da vergonha. [...]”
Robert Bly, Iron John. pgs. 156 e 157.
Tradução livre.
O trauma é uma canção presa no repeat.
Mesmo quando pensamos não ouvi-la ou acreditamos escutar outra música, ela está lá; tocada baixinho ou sampleada dentro de uma nova canção, nos vemos repetindo as mesmas notas, acordes e refrões, tantas vezes sem nem nos darmos conta, até ser tarde demais.
Aí meu nêgo, é choro e ranger de dentes.

(arte: O Juízo Final, Giotto)
Diante da dor não há divisão. Como a morte, ela é uma das grandes equalizadoras da condição humana, posto que não há ser humano que não sofra. Sim, até aquele rosto lindo, corpo sensual, conta polpuda e cérebro magistral sofrem assim como você, não se engane. “Aquele que não sofre” apenas está coberto com o manto da nossa projeção sobre o que é uma vida sem sofrimentos. No frigir dos ovos, como já diria minha querida Rita Lee, “tudo vira bosta” – todos acabamos no mesmo destino e passamos por muitas das mesmas paradas, seja de carroça ou na cabeça de um trem-bala.
“O inferno são os outros!”
Não Sartre, o inferno somos nós mesmos.
Passamos a vida inteira segurando dores, suportando desagrados, tolerando cadafalsos e carrascos e para quê? Há de fazer sentido que não faça sentido para alguns continuar vivendo essa vida. Há de se ter razão na perda da razão do momento de raiva em que esmurra o outro e se quebra a mão. Há de se querer dopar para esquecer que ao sentir só se vive em dor. Há de se querer parar; enxergar o inferno é para poucos.
Detesto o emprego da palavra tóxico como descritivo de condição. Quem me conhece sabe que utilizo a palavra “disfuncional” em seu lugar – pois algo que um dia desempenhou alguma função pode perde-la, mas seguir existindo, tornando-se assim uma pedra no sapato ao invés de trampolim ou manivela. Quando vejo por aí pessoas ou campanhas falando de “toxicidade” fico indignado com a tácita aceitação da imutabilidade que esse termo carrega; mas faz sentido: talvez seja reconfortante pendurar sobre o pescoço de outrem a plaquinha de inimigo. Nos desenhos que assistimos na infância o vilão sempre é um caso perdido.
Prefiro não me dar a esse luxo. O que seria de mim, profissionalmente, se eu me recusasse a atender o agressor e ouvisse apenas os agredidos? E o que seria de mim enquanto pessoa se eu, humano que sou, desacreditasse da capacidade minha e de meus semelhantes de mudarem, crescerem, se adaptarem, sobreviverem?
Não meus camaradas, não existe coisa como “pessoa tóxica”, “relacionamento tóxico”, “masculinidade tóxica” ou “positividade tóxica”, tudo isso é ficção, criação de um marketing (talvez) bem-intencionado em transmitir uma ideia complexa a partir de um rótulo simples. Como toda tradução, nessa simplificação algo se perdeu, e essa perda causa um dano inimaginável. Retire um átomo de uma cadeia aromática: o remédio se torna veneno.
Tenho sete anos de prática em psicologia, entre a clínica, facilitação de grupos e trabalhos na área de saúde mental. Certamente que já vi muitas atitudes violentas, agressivas, invasoras, chantagistas, ameaçadoras, possessivas, controladoras, manipuladoras, destrutivas, suicidas e homicidas, inclusive, mas jamais conheci uma só “pessoa tóxica”. E vocês sabem por quê?
Porque ao contrário do juiz, treinado e muito bem pago para ouvir, julgar e sentenciar, o trabalho do psicólogo é de escuta, contato e recondução à saúde.
Todos os nossos atos são tecidos pelas linhas do afeto, compondo assim a nossa tapeçaria interna de sonhos, desejos, anseios, gostos, falas, atos, relações... Agora imaginem vocês que em uma tapeçaria dessas, lá bem no comecinho, uma dessas linhas é abruptamente cortada ou emaranhada com outros fios - quem sabe até mesmo de outros tapetes - o que acontece? Naturalmente que, se o tecelão continua o seu trabalho sem consertar o ponto de emarahamento ou sem o devido emendo, o trabalho se desenvolverá de forma distorcida, faltante ou corrompida diante do que inicialmente fora intencionado, correto?
Pensem, pois, que durante muitos momentos da composição dessa obra nós, os tecelões, somos inaptos a fazer algo sobre esses emaranhados e rupturas; somos muito novos no tear e o ritmo em que temos que aprender a tecer as diferentes cores e texturas que nos apresentam é frenético, beirando o alucinante. Mal entendemos o que acabou de acontecer e ainda assim temos que continuar, não há pausa do almoço nem dois altos pra ir ao banheiro. E a gente continua, continua, continua, continua, continua, continua... até que em algum momento paramos pela primeira vez para olhar aquilo que talvez já soubéssemos que estava errado e...
Espanto!
No entrelace do tear, a história que tecemos não foi a que acreditamos criar, mas aquela que, através de nossas habilidades e inabilidades, pudemos relutantemente entregar. E poder, meus queridos, nem sempre é querer.
Uma ruptura será sempre uma ruptura, seus traços são indeléveis. Um emaranhado será sempre um emaranhado; muitas vezes é possível desembaraçar, no entanto em outras o único caminho é cortar a linha emaranhada e fazer um remendo – e isso também deixará marcas.
Em outro trecho de seu livro, Bly aponta para algumas hipóteses a respeito dessas marcas:
“Acredito ser provável que a morte prematura dos guerreiros [internos] de um homem previna que o menino que o habita cresça. É possível também que impeça o desenvolvimento dos aspectos [psíquicos] femininos no garoto. Sabemos que Dickens, por exemplo, sobreviveu a uma infância terrível, também percebemos que suas personagens femininas tendem a ser sentimentais e infantis. É possível que esses seres infantilizados sejam projeções de sua abalada mulher interior, a quem os seus guerreiros não puderam proteger da violência ao redor.
O garoto interior [de um homem] em uma família disfuncional pode continuar sendo envergonhado, invadido, desapontado e paralisado por anos e mais anos. “Eu sou uma vítima”, ele diz de novo e de novo; e ele é, de fato. Mas é exatamente essa identificação com o papel de vítima que mantém a casa de sua alma aberta e apta para ainda mais invasões. [...]”
Robert Bly, Iron John. pg. 158.
Tradução livre.
As marcas nem sempre são visíveis aos passantes, mas sempre são sensíveis ao toque.
É ao sentir mãos, nossas ou - mais comumente – não, tateando nossos remendos e rupturas que sentimos em nosso ser o estremecimento tão familiar e profano; é na “falha” que nos revelamos, é pela brecha que nos despimos – ou somos despidos.
Quando não estamos prontos para esse tato podemos subitamente experimentar o gosto inesquecível de nosso próprio inferno; o corpo retesa, o coração dispara, a mente torna-se turva. Se à noite todos os gatos são pardos, o que dizer quando não são os olhos, mas a nossa alma que é envolvida pela escuridão?

Roda a roda, tudo passa, nada muda.
O jorro de dor, vergonha e arrependimento facilmente nos escapa pelos poros. Quando nos damos conta, vemos que causamos tanto estrago quanto, lá atrás, nos fora causado, e pior: àqueles que mais amamos ou que, muitas vezes, nada têm a ver com o fato.
Acredito que muitas vezes causamos no outro as feridas que nos foram causadas não por maldade, mas pelo simples desejo de irmandade.
“Já que não é possível o amor, faça-se a dor!”
E a dor se fez.